o prefácio de Gil Mendo

"Recordar o que tem sido a carreira artística de Olga Roriz, descobrindo, pelo caminho, as suas memórias, os seus fundamentos e as suas repercussões, é também recordar algumas décadas da dança em Portugal, desde a criação do Centro de Estudos de Bailado, no Teatro Nacional de São Carlos, e depois a reforma do Conservatório Nacional e a criação da sua Escola de Dança, passando pelos anos agitados imediatamente a seguir ao 25 de Abril de 74, a criação da Companhia Nacional de Bailado, a renovação estética do Ballet Gulbenkian sob a direcção de Jorge Salavisa, os primeiros ensaios de uma dança independente, a pulsão cosmopolita dos anos oitenta, o cruzamento de linguagens e as colaborações artísticas, essa redescoberta do mundo que foram os Encontros Acarte, as rupturas estéticas e a eclosão do movimento da nova dança, o reconhecimento da existência de uma dança independente e a proliferação de estruturas e de projectos a partir de meados dos anos noventa, até à grande diversidade e relativo apaziguamento que hoje conhecemos.

Olga Roriz tem tido um papel de destaque em praticamente todos os movimentos importantes das últimas três décadas de dança em Portugal, sem ter ficado aprisionada em nenhum deles, sinal da sua independência e da sua individualidade artística. Afirmou, desde jovem, uma personalidade criativa ímpar. Quem, daqueles que tivemos a possibilidade de o testemunhar, não recorda com emoção as estreias de Lágrima, de Espaço Vazio, de Casta Diva, de Terra do Norte, de As Troianas, de Jardim de Inverno, de Treze Gestos de Um Corpo, de Isolda, de Propriedade Privada? Quem não recorda a surpresa daquela dança inesperadamente próxima da terra, assumidamente sexuada, que não procurava sublimar nem estilizar a paixão e o conflito? Quem não recorda o fascínio, a expectativa de um maravilhoso mundo novo e sem barreiras, suscitados por Teatro de Enormidades Apenas Críveis à Luz Eléctrica?

Coreógrafa e intérprete do Ballet Gulbenkian, aí afirmou a sua personalidade e o seu espírito inovador. Coreografou para a Companhia Nacional de Bailado, e também aí o peso de uma companhia de repertório clássico não a inibiu de criar uma das mais fortes peças da sua carreira, As Troianas. Quando sentiu que o espaço das companhias formais não era adequado para os seus projectos, criou-os independentemente e em espaços alternativos, sendo das primeiras a fazê-lo, em colaboração com outros criadores e intérpretes que igualmente marcaram a viragem cultural importante que se deu em Portugal a partir dos anos oitenta. Quando entendeu que isso era o mais indicado para o prosseguimento dos seus projectos artísticos, criou a sua própria companhia de autor. Tem procurado sempre ter a estrutura adequada para cada uma das suas criações, mas não se deixar aprisionar, ou condicionar, pela estrutura.

As suas criações espelham a mulher que Olga Roriz é: ciosa do rigor e do domínio perfeito do seu métier, apaixonada pela vida, pelo mundo, pelas pessoas.

Este livro de Mónica Guerreiro constitui um repositório ímpar de documentação e testemunhos sobre Olga Roriz, sobre cada uma das suas criações, e sobre sucessivos períodos e contextos na história da dança em Portugal nestas últimas décadas. Nele reencontramos os críticos que ao longo do tempo foram escrevendo na imprensa portuguesa e, através dos seus textos, podemos aperceber-nos do contexto que rodeou determinada criação e das questões que à época dominavam a actividade coreográfica em Portugal. Encontramos o testemunho de outros criadores e de muitos intérpretes que são quem dá corpo à nossa memória e ao nosso património coreográfico. E cada testemunho dá-nos um precioso depoimento sobre os processos de criação e uma visão sobre uma época ou sobre o contexto específico em que tal ou tal criação se processou. Encontramos o testemunho de cenógrafos, ou de desenhadores de luz, e também eles, com os seus depoimentos, nos dão um retrato plural, vivido, dos contextos que rodearam as criações de Olga Roriz.

Dando voz a todos estes outros protagonistas da vida coreográfica portuguesa das últimas décadas para traçar o retrato multifacetado da protagonista central desta obra, Mónica Guerreiro proporciona-nos, assim, um documento utilíssimo sobre Olga Roriz e as suas obras e, simultaneamente, sobre a história recente da dança em Portugal."

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