a introdução de Mónica Guerreiro

COMEÇAR PELO F.I.M
"O primeiro espectáculo de Olga Roriz a que assisti ao vivo foi a estreia absoluta de F.I.M. (Fragmentos.Inscrições. Memórias), no início de 2000 no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian. A artista regressava à casa que a viu crescer com uma antologia, um trabalho costurado a partir de excertos e memórias de criações anteriores. A ocasião era paradoxal logo no anúncio: estreia absoluta? Esperavam de mim que escrevesse sobre o que tinha visto. Mas como se percebe um espectáculo destes, feito de passados múltiplos que agora se recuperam e transfiguram — porque não poderão já ser a mesma coisa — sem se ter visto ainda nenhum dos que lhe dão origem? Escrevi então: o regresso de Olga Roriz ao Ballet Gulbenkian, depois de sete anos de ausência, assinala-se com uma peça que faz jogar, não de forma inocente, os conceitos de tempo e memória (Blitz, Janeiro de 2000). E tanto me escapou, verifico agora.
Quando o projecto deste livro começou a ser delineado, posso dizer que conhecia já muito melhor a sua obra: horas de visionamentos em vídeo das décadas de 80 e 90, além das criações que sucessivamente estreou e repôs entre 2000 e 2006, informaram a minha introdução à cosmogonia Olga Roriz. Mas nunca, na verdade, deixei de sentir que estava aquém da inteira percepção das suas motivações e propósitos. Ao longo destes anos fiquei a conhecer uma mulher como haverá poucas. A vivacidade, o ânimo com que relata as suas histórias, como as ilustra desenhando com o seu corpo, como testemunha uma alegria de viver que contrasta com a imagem distante que criou na vida social, foram as primeiras surpresas. Mas impressionou-me principalmente a enorme disponibilidade e paciência, e a desarmante honestidade. A força incontornável da Olga é a sua feroz autenticidade, para consigo própria e para com os outros. Não são só qualidades valiosas: são os pigmentos que desenham um talento reconhecido. Mas também são as características que condicionaram uma vida e um percurso profissional, cuja história aqui em parte se relata.
Esboçar uma biografia, seja ela qual for, implica mais do que uma viagem no tempo: implica viajar ao interior de uma pessoa. É necessário cartografar e explicar os acontecimentos importantes, mas também transpor o muro que existe para além desses e retratar um ser, em carne viva, com corpo e com espírito. Para tanto, os conhecimentos objectivos não me chegaram, porque precisava tomar o pulso àquela pessoa, ao seu ímpeto criativo, ao seu pensamento; entrar nesse mundo contraditório e apaixonante. Conhecê-la, através de muitas horas de conversas a duas, foi o meu primeiro passo nessa viagem.
O processo de investigação e reconstituição de memórias, que se lhe seguiu, foi longo mas inestimável. Permitiu-me multiplicar os olhares sobre factos partilhados, segundo a noção de que a memória não é um documento mas que é muitas vezes a sua clarividência que ajuda a iluminar aspectos menos conhecidos ou não consensuais. Por isso, tenho uma enorme dívida de gratidão para com os quase 50 entrevistados que aceitaram dar o seu testemunho (porque houve quem não aceitasse) sobre esta mulher que não convoca unanimismos. Todas as declarações cuja origem não surge referenciada em rodapé resultaram de entrevistas conduzidas por mim, especificamente para este livro, entre Setembro de 2003, quando entrevistei Carlos de Pontes Leça, e Abril de 2006, data da conversa com Margarida de Abreu.
Quando chegou o momento de deitar mão a todo o material reunido, este livro poderia ter tomado múltiplas formas. Eis aquela que ficou: capítulos com uma baliza temporal, cronológica, epigrafados por declarações reveladoras desse intervalo, e intercalados por secções intermédias, que focam mais detalhadamente uma criação representativa daquele tempo e que se querem ler como programas de espectáculos. Não foi pacífico fixar uma estrutura e ser-lhe fiel. Até pelas constantes inflexões que a narrativa impunha, que conduziram à necessidade de desmontar períodos de autêntica sofreguidão produtiva. Mas a maior dificuldade foi assegurar que as diversas hipóteses de abordagem ao seu trabalho eram contempladas. Porque, afinal, como escreveu Jorge Listopad, Olga Roriz é um caso à parte na panorâmica de novos factos da dança contemporânea. As suas coreografias são revigorantes: o carácter teatral dessa dança, o cunho épico-dramático, suscita simpatia, empatia, porventura antipatia, nunca apatia. A sua linguagem próxima de um «novo expressionismo», na origem da sua carreira, espontânea, selvagem, interessa tanto aos baletómanos como à gente do teatro. Inquieta e ligeiramente inquietante, soube assaz metodicamente traduzir para a «sua cena» os fantasmas de várias épocas e estilos, superá-los, traduzindo-os para a sua linguagem. Apenas podia estranhar-se que ainda não se tenha feito um estudo mais detalhado das modificações resultantes da sua prática (Diário de Notícias, Fevereiro de 1990). Só que, todos estes anos passados, já existem os estudos académicos. Também existem muitas, muitas centenas de páginas de artigos, entrevistas, críticas, perfis. Faltava, a meu ver, cruzar toda essa informação, para fornecer não apenas a história da acção artística da coreógrafa, mas também um relance sobre a sua vida. Porque há algo para que apontam todas as fontes consultadas e que é confirmado pelas pessoas que entrevistei: a obra de Olga Roriz não pode ser dissociada da sua vida. As suas peças revelam, de modo despudorado, as suas opções e obsessões pessoais, aquilo que a perturba e entusiasma, e aquilo que vive. Apresentando a uma jornalista as suas fotografias dilectas, a criadora disse mesmo: nesta, estava a trabalhar em Felicitações Madame, apesar de estar na praia, porque não há uma separação entre a minha vida pessoal e a profissional. Por mais fotografias da minha vida pessoal que escolhesse, elas estariam sempre ligadas a momentos da minha carreira. A fotografia foi tirada dia 8 de Agosto de 2005, no seu 50.º aniversário. Ainda nesse ano, completaria 30 anos de profissionalização e 10 anos sobre a fundação da Companhia Olga Roriz. Pouco antes, tinha sido homenageada pelo Presidente Jorge Sampaio no Dia Internacional da Mulher, e tinha-lhe sido entregue (ex aequo com Rui Horta), pelo Ministério da Cultura, o Prémio Almada. Este livro surge, portanto, depois de um tempo de celebração e balanço. Mas não quer ser um livro comemorativo. Também não quer ser uma história da dança em Portugal dos últimos 30 anos: outras personagens dessa história são referidas, mas em função da protagonista, na medida em que se relacionaram com ela ou como a ajudaram a definir-se. Este livro quer ser o repositório de uma história, a história que fazia falta contar, sobre a artista e a mulher Olga Roriz. Foi isso que quis fazer quando o imaginei e foi isso que propus à Olga quando a desafiei a embarcarmos nesta aventura. Por uma feliz conjugação de vontades e oportunidades, e contra o cepticismo inicial, ele aqui está.
Agradeço à Olga ter-me confiado as histórias da sua vida, ter tornado possível entrar no seu mundo e dar-se a conhecer da forma generosa e reveladora que aqui partilho. Estendo o agradecimento ao Pedro Quaresma, ao Manuel Rosa, à Rita Lynce e ao Gil Mendo, peças basilares desta produção, e a todas as pessoas — tantas que são inumeráveis — que com o seu pensamento, as suas memórias e os seus arquivos contribuíram para que pudesse traçar o retrato mais completo possível. Por fim, agradeço aos amigos que, com a sua leitura atenta e crítica, me foram encaminhando nesta viagem, e ao Rui, que tantas vezes foi a minha incansável âncora.
Dedico este trabalho às pessoas mais inspiradoras do mundo: a Diana, a Katia, a Mariana, a Sofia, o Jorge e a Nicole.

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